A Amnistia Internacional e a Roots têm colaborado para apoiar o bem-estar e a resiliência no ativismo através de uma série de formações e workshops a nível internacional. Este trabalho tem explorado as necessidades de bem-estar dos ativistas e tem ajudado a desenvolver competências e a construir recursos e apoio, disponíveis para toda a gente.
Foi desenvolvido um inquérito online para mapear as várias formas de ativismo, os tipos de táticas e as barreiras às dimensões do bem-estar pessoal e coletivo de ativistas. O inquérito teve a participação de mais de cinco centenas de ativistas de 88 países.
O relatório que resultou da consulta aponta para a necessidade de reconhecer a importância do bem-estar dos ativistas, a importância de ter acesso a apoio, recursos, proteção e segurança, a criação de espaços onde as ativistas possam estar em rede de apoio como sendo alguns dos elementos fundamentais para o seu bem-estar.
EM PORTUGAL
Em Portugal, o bem-estar no ativismo também tem os seus desafios. Ouvimos duas ativistas de coletivos pela justiça climática e pela libertação da Palestina, que partilharam as suas reflexões sobre o bem-estar no ativismo. O que partilharam está em linha com as conclusões do inquérito internacional. O bem-estar é importante e ter redes de apoio é fundamental para desenvolver a resiliência no ativismo.
Aqui seguem os seus testemunhos completos. Jeca faz parte da Greve Climática Estudantil, um coletivo de estudantes que luta pela justiça climática. Sofia está ligada ao Coletivo pela Libertação pela Palestina e movimentos antifascistas.
1. Como te identificas no teu ativismo?
Jeca: Passei a “identificar-me no ativismo” quando isso deixou de ser uma palavra, e ganhou um significado existencial na minha vida, sobre a pessoa que eu quero ser no meio de tudo isto.
Uma grande parte desta sensação é sobre não estar sozinha, nem ter de me identificar sozinha. É muito difícil parar de fingir que está tudo bem se toda a gente à tua volta [as pessoas] continuam a fazê-lo. Mais difícil ainda é acreditar que seria possível algo diferente, ou que tu podes fazer parte disso.
Ninguém nasce ativista, e não há super-heróis, mas há essa ideia na sociedade, de que somos pessoas diferentes. Quando vês pessoas, que estudam, vivem, têm os seus amigos e os seus problemas… E se preocupam e querem fazer alguma coisa, a sensação é completamente diferente.
Houve um momento qualquer em que “o mundo está tão lixado” deixou de ser [só] um facto, e passou a ser uma sensação. Uma sensação muito visceral.
Porque de repente havia um espaço em que era permitido sentir isso.
Havia de facto uma conversa a acontecer sobre o que íamos fazer para responder a isso. E depois da conversa, havia um plano e tarefas e de repente fazes parte de algo.
Só quando o teu corpo sente tudo isto, se sente realmente capaz de criar mudança, é que se permite sentir profundamente a realidade. Somos ensinadis sistematicamente que não há nada a fazer, e isso obriga o teu corpo a bloquear o problema.
Sofia: Penso que ainda estou a encontrar o meu papel individual dentro do meu ativismo. Tendo a realizar tarefas relacionadas com cuidados dentro dos coletivos e das ações, em parte pela minha experiência pessoal e profissional com primeiros socorros e psicologia.
2. Que causas te movem? em que tipo de ações e táticas estás envolvida?
Jeca: Faço parte da Greve Climática Estudantil, um coletivo de estudantes que luta por justiça climática. A crise climática traz consigo e exponencia as desigualdades e injustiças sociais inerentes a um sistema que põe o lucro acima da vida. Com ela vêm as guerras, crises de subsistência, catástrofes a um ritmo nunca visto e o risco de perdermos tudo o que amamos.
E eu como estudante de medicina não conseguia viver uma vida alienada (ou seja, dita “normal”) quando sei que a crise climática põe não só a nossa existência em causa como a vida de milhões de pessoas em risco. Isto significa viver todos os dias em estado de emergência!
E, por isso, participo em ações de desobediência civil de massa, porque desobedecer visibiliza injustiças estruturais da sociedade e mostra que não podemos consentir com governos e instituições que estão deliberadamente a levarem-nos ao colapso. Por outro lado, ocupo escolas e universidades porque são os nossos espaços de organização em que construímos um movimento estudantil capaz de enfrentar o colapso climático. Ocupamos escolas e universidades para mostrar que a normalidade não pode continuar e que estudantes não consentem com a inação suicida das instituições.
Sofia: Em Portugal, organizo-me maioritariamente à volta de causas pela libertação da palestina e movimentos antifascistas. Adicionalmente, envolvo-me com causas relacionadas com migração (ex. diretos de refugiados, criminalização de refugiados e trabalhadores humanitários).
Ao longo do último ano estive envolvida na organização e concretização de diversos tipos de ações, desde marchas, protestos, contramanifestações e vigílias a ações disruptivas, como ocupações e bloqueios.
3. O que significa bem-estar no contexto do teu ativismo?
Jeca: Bem-estar não só como ausência de todas as formas de violência a que assistimos: violência policial, violência perante determinados corpos, violência emocional, ….
Bem-estar não só como ausência de racismo, xenofobia, machismo, transfobia… e todos os outros ‘ismos’.
Bem-estar não só como ausência disso, mas como oposição a isso.
Uma sociedade ecofeminista, centrada numa cultura de cuidados, em oposição a uma sociedade capitalista, centrada numa cultura de exploração, onde vemos nos nossos dias normalizada a exaustão das pessoas que amamos, onde uma minoria lucra e beneficia com essa exaustão. Uma sociedade onde a habitação fosse um direito assegurado, onde toda a gente tivesse acesso a cuidados de saúde básicos. Falamos também em energia como necessidade básica e essencial à vida, porque, em pleno 2024, – pelo simples facto de energia não ser um direito, mas um negócio -, no meio des que têm o “luxo” de ter uma casa, ainda há quem morra nela de frio.
Bem-estar como uma utopia onde todis is jovens pudessem estudar e preparar um futuro sem a ansiedade e frustração constantes de saber que, por mais que estudem, não o vão ter… e, por isso, ocupamos faculdades, porque nesses dias prefiguramos e vivemos o bem-estar e a sociedade que queremos construir.
Sofia: Para mim, bem-estar no ativismo tem várias dimensões. Neste momento, o mais importante é não deixar que o ativismo consuma a minha vida, isto é, tento procurar um equilíbrio entre a energia e tempo que uso no ativismo e a energia/tempo que necessito para outras áreas da minha vida (ex. estudos, família, etc.). Penso também que no ativismo é extremamente relevante estar rodeade de pessoas em quem confio, uma vez que enfrentamos juntes momentos vulneráveis. Quando não há cuidado e confiança dentro do grupo, é difícil haver bem-estar individual e de grupo. Por último, para mim é também importante sentir que as ações que faço têm efeito, mesmo que pequeno.
4. O que ameaça o bem-estar de ativistas?
Jeca: Atualmente diria que a repressão a aumentar cada vez mais.
Por exemplo, no último semestre durante as ocupações pelo fim ao genocídio [em Gaza] e pelo fim ao fóssil a polícia foi chamada à faculdade duas vezes.
Uma primeira vez à Faculdade de Psicologia da Universidade de Lisboa e uma segunda vez à Nova Medical School.
Nesta última, eu e mais quatro colegas de medicina fomos insultadas, detidas e agredidas pela polícia dentro de uma sala de aula da nossa própria faculdade, a pedido da direção, e tudo isto porque abrimos uma faixa numa das varandas da fachada da faculdade a dizer “Escola Médica declara Fim ao Genocídio, Fim ao Fóssil”. E o pior disto tudo é que até hoje nenhum membro da direção tentou falar com nenhuma de nós!
Infelizmente também sabemos que a repressão a aumentar é uma resposta esperada de um sistema que está a tentar defender-se a si mesmo.
Sofia: Na minha visão, uma das maiores ameaças ao bem-estar de ativistas é a urgência das causas pelas quais lutamos – há sempre ações por organizar e formas de escalar. É muito fácil deixarmo-nos levar pela rapidez com que tudo tende a acontecer no mundo do ativismo, acabando por deixar para trás as tarefas consideradas menos urgentes, como por exemplo a aprendizagem, capacitação e união do grupo.
Outro fator que considero ser uma ameaça relevante para o nosso bem-estar é a pressão que pomos uns nos outros, para fazer mais ações, mais radicais e maiores. É importante que cada ume de nós tenha agência sobre o seu ativismo e tome as suas próprias revisões. Contudo, já fiz parte de grupos e coletivos onde me senti pressionada a fazer parte de ações com que não me sentia 100% confortável.
Adicionalmente, um fator que penso ser bastante transversal a muites de nós é o espaço que cria entre nós e as nossas famílias e amigues que não fazem ativismo. É difícil sentirmo-nos apoiades por elus. Pessoalmente, o meu ativismo já foi fonte de muitas discussões familiares e entre amigues.
5. O que pode apoiar o bem-estar de ativistas?
Jeca: A melhor forma de ajudar é a mesma de sempre e para tudo, continuarmos a apoiar-nos e sermos cada vez mais. Isto significa juntares-te à luta pelas nossas vidas!
Sofia: Em primeiro lugar, penso que é importante estarmos rodeades de pessoas em quem confiamos. É importante também que exista espaço e tempo para questionar e experimentar coisas novas – o que quero dizer com isto é que muitas vezes ficamos presos a um tipo de ação ou uma forma de fazer as coisas por ser mais fácil. Como ativistas penso que devemos tentar ao máximo incorporar as coisas pelas quais lutamos no nosso dia-a-dia. Por exemplo, não chega dizermos que cuidamos umas das outras e que somos transfeministas, quando há um caso de assédio dentro dos nossos círculos, temos de saber como agir e agir de forma radicalmente cuidadosa e diferente da sociedade em que vivemos.
Uma forma de apoiar o bem-estar de ativistas é então construir estas redes de apoio, não só apoio individual em situações de crise, mas também apoio entre causas e movimentos de forma a criar redes de apoio mútuo e simplificar processos e tarefas (evitar duplicar trabalho).